terça-feira, 8 de dezembro de 2009

A sagração

"Coco Chanel e Igor Stravinsky", de Jan Kounen: um registo competente e seguro quanto baste. Mas não é para uma apreciação crítica genérica do filme, do seu enredo romanesco, que aqui venho. Traz-me simplesmente a sequência inicial, relativa à estreia do ballet "Le Sacre du Printemps", no Théatre des Champs-Elysées, em Maio de 1913. Ou seja, da obra mais emblemática de Stravinsky, coreografada na ocasião por Nijinski. Tratou-se de um célebre espectáculo, que provocou um enorme tumulto na assistência, maioritariamente indignada. E que requereu mesmo a intervenção da polícia, pois o cenário na plateia estava a parecer-se perigosamente com uma épica rixa de saloon. Só dez anos depois a obra foi devidamente apreciada pelo público, após apresentação no mesmo local. A gorada estreia suscitou-me um sem número de reflexões. Sobretudo porque vivemos num tempo que consagrou a cultura de massas, a confusão fatal ente cultura e lazer, num território simbólico fundamental, onde a noção de consumo já não faz sentido, mas o "devir com". A indiferença "normalizada" perante os produtos saídos da indústria cultural, assim como a relativa banalização do gesto criativo, diante da auto-complacência e de uma subsidiação pública sem critérios consistentes, compõe o resto do quadro. Hoje em dia, ninguém iria patear uma obra que considerasse ultrajante ou fora do cânone. Diria simplesmente que foi "interessante", depois de abandonar a sala a meio, com medo de parecer um bota de elástico. Mas sendo este relativismo acrítico uma doença contemporânea, limitou-se, no fundo, a substituir outras, igualmente nocivas, embora mais compreensíveis, porque relapsas ao "deixa andar". O que aconteceu naquele dia de Maio de 1913 foi prodigioso! O séc. XIX e o séc. XX encontraram-se pela primeira vez cara a cara, sem subterfúgios. Com as suas linguagens inconciliáveis. O caos a irromper pela estabilidade anafada de um mundo que iria ruir no conflito que se seguiria, um ano depois. Não consigo imaginar, por muito que tente, o choque que provocou naqueles cavalheiros vitorianos da Belle Époque aquela energia vital selvagem, nitzschiana, aquela trepidação ciclotímica das figuras animadas pela música de Stravinsky. Que inauguraram, nesse preciso momento e de pleno direito, a modernidade plena. O que se passou foi como que o encontro, nada pacífico, de dois mundos. E ao contrário de outros, mais amistosos, nem sequer teve a pena de um Pero Vaz de Caminha para o imortalizar. Creio, porém, que o filme veio colmatar essa lacuna. Não sei se a expressão terá aqui inteiro cabimento, mas vou arriscar: "e nada mais seria como dantes"...

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