terça-feira, 22 de setembro de 2009

Crítica - 7


Não há que abusar dos adjectivos, bem o sei, da mesma forma que não se deveria abusar da comida ou do álcool. Todavia, o mundo está cheio de obesos e dipsómanos. Verdad? Ora, não é exactamente a esta adição gramatical que me refreia. Quando os adjectivos me dominarem, farei uma cura de desintoxicação e poderei esquecer-me para sempre deles. Entretanto, vou flutuando sem esforço de maior, rodeado de uma campina aprazível, que faz lembrar a Toscânia no seu melhor. Entre um mergulho e outro, comento mentalmente a sessão cinematográfica da noite anterior. Depois de um opíparo jantar nas cercanias. Trata-de de Slumdog Millionaire (Quem quer ser Milionário?), a oscarizada película inglesa passada na Índia. Paul Eluard, o poeta francês amante da simplicidade, o mesmo que soube descrever numa única estrofe toda a ambiguidade do mau estudante, esse que "diz não com a cabeça, mas sim com o coração" (Jacques Prevert), escreveu também algures que "há decerto outros mundos, mas estão neste". É uma frase tão concisa e clara que, há alguns anos, foi utilizada na publicidade televisiva, onde aparecia uma piscina privada ainda mais convidativa do que aquela em que me encontrava. É que a câmara lenta tem um poder subjugador, hipnótico: embeleza até os tarantinianos tiros na cabeça com abundantes salpicos de sangue e miolos. É claro que tinha ficado bastante impressionado com o filme do concursante hindu; talvez porque conhecia muito bem dois dos mais recorrentes métodos de tortura argentinos: a imersão sem escafandro e os choques eléctricos. Neste caso, além da cegueira com uma colher de pau, novo para mim, e o mergulho na merda humana, toda uma metáfora, a película de Danny Boyle ensina-nos como se pode sair de toda essa desgraça. Precisamente com a ajuda de um golpe de sorte que nos faça milionários e a companhia de um amor "que te cuide, que te cuide". Love is a magnificent thing, já se sabe, sabêmo-lo todos, e graças a ele, ao maravilhoso, angélico amor, um documental de ritmo acelerado sobre a miséria actual nas grandes urbes pode converter-se num conto de fadas com Happy End, ao estilo Bollywood. Suponho que para pagar de alguma forma tanto aprazível, apiscinado prazer burguês, decidi ver no dia seguinte outro blockbuster de forte conteúdo social: Gomorra. Não vou por-me a criticar agora a redundância de certas cenas, nem a confusão que produz um casting de actores secundários, supostamente não profissionais com rostos familiares, nem sempre diferenciáveis. O filme é certamente digno e não oferece possíveis finais felizes: os corruptos sê-lo-ão ainda mais, os que pretendam um percurso autónomo despertarão convertidos em cadáveres crivados de balas. Os resíduos tóxicos cobrirão o mundo, temperando com cianeto os nossos melões, e uma Grande Camorra Globalizada acabará por dirigir cada segundo das nossas vidas, através da ambição, da necessidade, da ignorância e, sobretudo, do medo. Ainda que a minha já manifesta adição aos adjectivos possa levar a mais equívocos, queria ainda referir outro filme maior, The Cooler (Má sorte, 2003), com Maria Bello, Alec Baldwin y William H. Macy como cabeças de cartaz. Azar, dinheiro, máfias e finalmente amor; novamente um grande amor que tudo vai mudar. Las Vegas é um lugar iluminado em excesso, onde se passeiam um punhado de pessoas com demasiada ambição e pouco discernimento. À margem, tentando não cair ruidosamente do tapete, encontram-se os perdedores de sempre. Interpretados com algum brilhantismo por Macy e Bello, estas duas personagens quase normais merecem melhor sorte. De tal forma que o guionista e realizador, Wayne Kramer, um bom tipo, criativo, audaz e inteligente, decide então presenteá-las, permitindo-lhes escapar do círculo infernal onde se haviam encontrado. Pela minha parte, depois de farejar, graças ao cinema, estes outros mundos não tão distantes, decidi que o lugar onde estou, o meu pequeno universo quotidiano, não se parece demasiado com esses infernos. De sorte que ainda não me atrevo ainda a chamá-lo de paraíso. Mesmo não tendo, para já, relação alguma com o conhecido tecno-purgatório de Huxley.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Crítica - 6


O que posso dizer da película "argentina" de Coppola, apresentada no último Festival de Cannes? Que é praticamente horrível? Que desde há muito não via algo tão mau num écran de cinema? Ambas seriam apreciações demasiado superficiais, sínteses algo simplificadoras das desagradáveis sensações que deixaram no meu corpo, no meu cérebro, na minha sensibilidade e - mesmo desejando que não houvesse chegado até aí, posso receá-lo - no meu já suficientemente açoitado inconsciente, as duas horas de sacrificada ingestão deste pudim indigesto chamado Tetro. Estava ansioso por ver o filme, reconheço. Tanto mais que criado por um realizador que admiro desde há muito e que agora decide ter como cenário um país tão estonteante e complexo. Mas vamos já já ao que interessa. Para que não pensem que sou assim tão negativo, tentarei salvar alguma coisa deste titânico naufrágio. Aqui vai pois uma pequena lista de salvados:
1) O jovem actor de nome impronunciável: Alden Ehrenreich. Quase um clone de Leonardo DiCaprio, conserva uma ambígua e terna ingenuidade infantil, actua com elegante naturalidade, apesar do estranho enxame de desengonçados que o rodeiam durante todo a longa, inacabável, metragem do filme.
2) A fotografia a preto e branco: clássica nos seus claros/escuros, sempre expressiva, por momentos magnífica.
3) A música, tão bela como redundante, misturando sons reconhecíveis do tango e o folclore argentino. Em muitos momentos é utilizada para destacar situações supérfluas que, supostamente, deveriam dotar o filme desse carácter porteño que Coppola encontra na rádio Colifata - é-lhe dedicada uma longa sequência quase documental dentro do filme- ou no mate amargo que a fotogénica e sempre algo distante Maribel Verdú oferece ao seu jovem cunhado.
Haveria que resgatar algo mais? Talvez o rostro impenetrável, cinematograficamente imprescindível, de Vincent Gallo. É melhor esquecer a patética aparição de Carmen Maura, num arremedo exasperante, óculos com armação de massa branca pelo meio, da escritora Victoria Ocampo. Como teria sido este personagem interpretado por Javier Bardem? Cego, talvez?
Mais perguntas: o que pretendeu Coppola com este, segundo ele, seu filme mais pessoal? Fartar-se para sempre? Visitar essa Argentina decadente, acelerada, superficial, orgiástica, soberbamente felliniana? Tudo faz crer que nunca recuperou o guião que lhe furtaram da sua casa do bairro de Palermo. E, com a produção já em marcha, teve que inventar este montão de absurdos enredos familiares no mais puro estilo Soap, à medida que ia filmando. É triste observar como o criador de O padrinho e One from the heart, o homem bigger than life, que arriscou várias vezes a sua fortuna pessoal para fazer o cinema que desejava fazer, se vende agora por um simples prato de lentilhas ao falso luxo de Swarovski, rapina nos coutos privados de outros realizadores - o último Leonardo Favio, Wong Kar Wai e Almodóvar entre os mais notáveis - e passeia-se com um olhar irónico e superficial pelas vastas pampas argentinas. Pouco mais que um cenário onde ele e a sua filha se fazem retratar para poderem vender-nos, também, as icónicas maletas de monsieur Louis Vuitton.