“Mal Nascida”
Realização: João Canijo
Pequeno Auditório do TMG, 11 de Fevereiro
Eis o toque de finados para os brandos costumes, num país que, pelos vistos, deles já prescindiu. Poderia ser este o subtítulo possível desta obra. Que é, antes de mais uma tragédia vivida no Portugal (realmente) profundo, rude, a preto e branco, definitivamente fora das páginas dos jornais e dos estudos de marketing. O tema é aliás recorrente na obra do realizador. Já em “Noite Escura”, filme aclamado aquém e além fronteiras, Canijo recorre à tragédia grega. No caso era “Ifigénia em Aulis”, adptada às desgraças de uma família do submundo português. Agora tenta recriar o mito de Electra, também orfã de seu pai, por sua vez também assassinado às mãos da mulher e seu amante. O autor é justamente considerado um dos cineastas com percurso mais singular e carismático da sua geração.
Neste filme, o motivo é o conhecimento. Um destino recreado para além do que se possa pensar dele. O apelo de uma justiça brutal e de uma fuga improvável aproxima a personagem principal da imponderabilidade e da incerteza. Ao mesmo tempo que a coloca muito para lá da censura ou da condenação. E da culpa. Como se, à semelhança da heroína da tragédia, a única punição que o destino lhe reservou fosse ter sobrevivido. O cenário para esta história onde os mortos pesam mais do que os vivos é numa aldeia dos confins de Trás-os-Montes. A rudeza e a austeridade da paisagem dificilmente “aguentariam” um registo pícaro, mais suave, mais garrido, mais festivo. De que o melhor exemplo é “O meu querido mês de Agosto”, de Miguel Gomes: Este rodado na zona do Pinhal. Aqui não há humanidade. O riso é uma afronta. O lirismo pode tornar-se um sarcasmo. E a morte um detalhe. Por falar nisso, sobressai uma contenção emocional que ameaça explodir a qualquer momento. Sob o peso asfixiante de um passado por resolver. Não são pois os “Contos da Montanha”, em versão cinematográfica, de um reino mágico e, ainda assim, temente a Deus. Aqui são contas de outro rosário. Aqui as histórias que se cruzam são matéria pura, matéria latejante, amor misturado com gordura de frango, sangue com maços de notas, porcos com cortejos fúnebres. A sequência da preparação do morto para a cerimónia é notável. Parece pois que nesta tragédia não há heróis. Mas há. Até por causa do profundo significado da tragédia. Ou seja, a ironia. Esta trata não dos pontos fracos dos protagonistas, mas dos seus méritos. O herói é empurrado sem apelo para a metáfora trágica, não pelos seus defeitos mas pelas suas virtudes.
Esta obra de João Canijo constituiu-se pois como um dos objectos mais insólitos do cinema português contemporâneo.
Realização: João Canijo
Pequeno Auditório do TMG, 11 de Fevereiro
Eis o toque de finados para os brandos costumes, num país que, pelos vistos, deles já prescindiu. Poderia ser este o subtítulo possível desta obra. Que é, antes de mais uma tragédia vivida no Portugal (realmente) profundo, rude, a preto e branco, definitivamente fora das páginas dos jornais e dos estudos de marketing. O tema é aliás recorrente na obra do realizador. Já em “Noite Escura”, filme aclamado aquém e além fronteiras, Canijo recorre à tragédia grega. No caso era “Ifigénia em Aulis”, adptada às desgraças de uma família do submundo português. Agora tenta recriar o mito de Electra, também orfã de seu pai, por sua vez também assassinado às mãos da mulher e seu amante. O autor é justamente considerado um dos cineastas com percurso mais singular e carismático da sua geração.
Neste filme, o motivo é o conhecimento. Um destino recreado para além do que se possa pensar dele. O apelo de uma justiça brutal e de uma fuga improvável aproxima a personagem principal da imponderabilidade e da incerteza. Ao mesmo tempo que a coloca muito para lá da censura ou da condenação. E da culpa. Como se, à semelhança da heroína da tragédia, a única punição que o destino lhe reservou fosse ter sobrevivido. O cenário para esta história onde os mortos pesam mais do que os vivos é numa aldeia dos confins de Trás-os-Montes. A rudeza e a austeridade da paisagem dificilmente “aguentariam” um registo pícaro, mais suave, mais garrido, mais festivo. De que o melhor exemplo é “O meu querido mês de Agosto”, de Miguel Gomes: Este rodado na zona do Pinhal. Aqui não há humanidade. O riso é uma afronta. O lirismo pode tornar-se um sarcasmo. E a morte um detalhe. Por falar nisso, sobressai uma contenção emocional que ameaça explodir a qualquer momento. Sob o peso asfixiante de um passado por resolver. Não são pois os “Contos da Montanha”, em versão cinematográfica, de um reino mágico e, ainda assim, temente a Deus. Aqui são contas de outro rosário. Aqui as histórias que se cruzam são matéria pura, matéria latejante, amor misturado com gordura de frango, sangue com maços de notas, porcos com cortejos fúnebres. A sequência da preparação do morto para a cerimónia é notável. Parece pois que nesta tragédia não há heróis. Mas há. Até por causa do profundo significado da tragédia. Ou seja, a ironia. Esta trata não dos pontos fracos dos protagonistas, mas dos seus méritos. O herói é empurrado sem apelo para a metáfora trágica, não pelos seus defeitos mas pelas suas virtudes.
Esta obra de João Canijo constituiu-se pois como um dos objectos mais insólitos do cinema português contemporâneo.
António Godinho, no jornal "O Interior", em 19 de Fevereiro de 2009
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