Realização: Cristophe Honoré, a partir do romance homónimo de Georges Bataille
Com Isabelle Huppert, Louis Garrel e Emma De Caunes
França, 2004, 110'
Pequeno Auditório do TMG, 4 de Março
Ciclicamente, o cinema tende a aproximar-se do seu aliado mais óbvio, a literatura. Paradoxalmente, também o mais perigoso e exigente. Sobretudo quando se trata de obras de escritores “malditos”, como Bataille. Poderosa e corajosa, esta segunda longa-metragem de Christophe Honoré, é uma boa surpresa. Bataille, com reputação de inadaptável para o cinema, ganhou vida perante os nossos olhos. O cineasta transpôs a acção do romance para os nossos dias e para as ilhas Canárias, num desses complexos turísticos de massas que florescem em Espanha: uma arquitectura cuja simples visão, inumana, assustadora, basta para desejar mergulhar no inconsciente para se perder. Desde os primeiros planos aos abanões da câmara que sobrevoa estas paisagens de betão, estamos já no centro da história. Pierre e a mãe procuram um absoluto no qual o erotismo é apenas um instrumento. Não é só uma questão de prazer, mas de abjecção, de pureza, de sede, de medo da morte. A mãe não é a santa que Pierre acredita e desde que o pai morre misteriosamente (nunca saberemos porquê, como no livro) ela vai provar-lho. É a verdade que está aqui em causa, a verdade obscura, aquela que cega. A mãe é alcoólica, vive no deboche, entrega-se sem complexos, sem limite. E decide iniciar Pierre no deboche, confiá-lo a outras mulheres que o vão conduzir a jogos cada vez mais perigosos e para os quais não está preparado. Não interessa qualificar estas cenas, porque há palavras estereotipadas que sujam as imagens, que retiram toda a força aos actos, que marginalizam de imediato quem os comete. Sexuais, sim, mas sobretudo transgressoras. E é esse o grande mérito de Honoré: ter conseguido salvaguardar o essencial de Bataille – a transgressão – adaptada para a nossa época (nomeadamente no que diz respeito à ocultação da dimensão cristã de Bataille - mas a morte de Deus não exclui a procura do absoluto). Com imagens que nos transportam para zonas ‘infilmadas’ até hoje num filme. Portanto, a questão do filme pertence muito menos a Bataille e muito mais a Honoré. Não é por acaso que o filme é conseguido sobretudo pelas liberdades que se permitiu face ao texto original. Sobretudo a localização da acção nas ilhas Canárias, destino turístico que vende uma utopia de sexo fácil e céu demasiado azul. Levar o prazer batailliano, inseparável da ideia de transgressão, para um local que é como uma caricatura de uma sociedade que já permitiu tudo, já normalizou tudo, era um grande risco. E o filme sai vitorioso deste risco. O outro risco estava relacionado com a forma de encontrar o erotismo. Poderíamos pensar que o resultado fosse fraco, recusando Honoré a composição de grandes planos explícitos. Percebemos agora que, permanecendo à distância, em plano geral, não suprimiu a carga sexual, mas expandiu-a para todo o plano. Para tanto, serviu-se de um casting tão prestigiado como heterodoxo, em que brilha na primeira linha a grande Isabelle Huppert, escoltada por um jovem actor sobredotado, Louis Garrel, uma actriz que finalmente se afirmou, Emma de Caunes, e um ícone do underground, Joana Preiss, manequim e modelo da fotógrafa Nan Goldin. É o próprio realizador quem o confirma, em entrevista concedida na altura da estreia: “Queria fazer um filme que só devesse à luz, aos actores, à música. Mas esta abordagem era ingénua e infantil. Percebi que o que podia ser interessante no meu cinema é eu ter um pé no cinema e outro na literatura.” A certa altura dois personagens fazem sexo e por trás lê-se num cartaz “Alle Infos hier” (Todas as informações aqui), mas bem que poderia ser “Alle Ninfos hier”. De facto, o espaço é mostrado de forma quase degradante – uma zona turística que fala várias línguas, onde ninguém está em casa. Onde, no limite, se parte para a auto-destruição. Mas é aí precisamente que Bataille nos quereria levar. Ao lugar onde, nas suas palavras: “O riso é mais divino, é mesmo mais indecifrável do que as lágrimas.”
António Godinho, no jornal “O Interior”, em 12 de Março de 2009
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