Liliana Cavani é conhecida por ser uma cineasta "maldita". Ou seja, alheia aos cânones do politicamente correcto e aos estereótipos do gosto hegemónico. De entre a sua obra singular, só conhecia até agora "Para lá do bem e do mal". Como o título sugere, trata-se da recriação de uma parte significativa da vida de Nietzsche. Nomeadamente, a sua passagem pelo norte de Itália, o mal de vivre cultivado pela aristocracia do espírito no último quartel do séc. XIX. E, claro está, o triangulo amoroso onde pontuou a inevitável Lou Salomé (e Rée).
"O Porteiro da Noite" (1974), é um filme perturbador, subversivo. Formalmente, trata-se de uma tragédia, ainda que alheia à compaixão e ao lirismo. Que desvela um erotismo brutal e intensamente poético. Dirk Bogarde é Max Aldorfer, um antigo oficial das SS e médico num campo de concentração. Após a guerra, escapando à justiça dos vencedores, trabalha como receptionista num hotel de Viena. Local onde reencontra, enquanto hóspede, uma das suas antigas "cobaias" e amante, Lucia Atherton, uma judia americana (Charlote Rampling). Max integra um grupo clandestino, composto por ex-nazis. O qual se encarrega de velar pela tranquilidade dos seus membros, mesmo que isso implique "apagar" algum potencial delator, ou testemunha incómoda. A ligação sentimental entre ambos refaz-se, como se de uma maldição se tratasse. Mas não sem alguma resistência. E não se trata, como já li, de uma ilustração do célebre "síndrome de Estocolmo", da atracção entre o carrasco e a vítima. Todavia, percebe-se porque é que o filme foi tão ostracizado durante tanto tempo. Os vencedores da guerra e a narrativa por si criada acerca da barbárie nazi não podiam permitir que um antigo torcionário "padecesse" de uma recôndita humanidade. Nem muito menos que uma vítima da Endlösung (solução final) retomasse uma ligação amorosa com um "monstro", algo que nem o terror nem a subjugação explicam. Onde os sinais da opressão, agora consentida e ambivalente, desenham as regras de uma obsessão passional viscontiana, demasiado intensa para sobreviver e demasiado verdadeira para ser tolerada. Onde um erotismo desregrado se alimenta da vigilância que sobre ele é exercida. Onde só esse transporte radical torna possível uma IGUALDADE ABSOLUTA E DIÁFANA entre o ex-torturador e a sua ex-vítima, agora irmanados na vida e na morte. Por outro lado, há um traço nesta obra que deve ter perturbado ainda mais os zelotas: a eliminação de qualquer intuito moralizador, propagandístico, quando são mostradas as sequências do período da guerra. Insistindo-se, ao invés, numa hiper-estetização do nazismo, despojado do seu programa, do "Lebensraum", e apresentado como puro cenário. Onde a arte ilude a subjugação que a inscreve e o corpo se descobre como o lugar preciso onde a dominação se exerce. Um cenário para a ditadura do espírito, a depuração da moral burguesa, o retorno a um gosto e uma pureza primitivas, que anunciam a verdadeira e redentora modernidade. Neste ponto, ficaram particularmente célebres duas sequências: a primeira, a do ballet ("nitzscheano") ao som da "Dança das Fúrias" (retirado de "Orfeo ed Euridice", de G.W. Gluck). Executado por um dançarino, perante um grupo de oficiais nazis. A segunda, uma cuidada coreografia de cabaret, com pinceladas de Kokoschka. A cantora/striper é a própria Lucia. No final, descobre-se depositária do mesmo troféu que a bíblica Salomé, aos pés do seu amo e senhor.
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